Sob a meta de descarbonizar seu sistema energético, a China começa a usar a inteligência artificial não só em políticas abstratas, mas no funcionamento cotidiano da produção, do transporte e do consumo de energia.
Um exemplo prático vem de Chifeng, no norte do país: uma fábrica movida por renováveis que produz hidrogênio e amônia com eletricidade proveniente exclusivamente de parques eólicos e solares locais. Diferente de plantas conectadas à rede geral, essa unidade opera em um sistema fechado — vantagem por usar energia limpa, desafio pela variabilidade do vento e do sol.
Para manter a produção estável, a fábrica conta com um sistema de controle orientado por IA desenvolvido pela proprietária Envision. Em vez de seguir cronogramas fixos, o software ajusta continuamente a produção conforme as mudanças no vento e na luz solar. Zhang Jian, engenheiro-chefe de energia de hidrogênio da Envision, comparou o sistema a um maestro que coordena em tempo real a oferta elétrica e a demanda industrial.
Quando os ventos sopram mais forte, a produção é automaticamente ampliada para aproveitar a energia disponível; quando as condições caem, o consumo é reduzido rapidamente para evitar sobrecarga. Segundo Zhang, isso permite operar a planta com alta eficiência apesar da volatilidade das fontes renováveis.
Projetos desse tipo são centrais nos planos chineses para hidrogênio e amônia — combustíveis considerados importantes para reduzir emissões em setores intensivos como siderurgia e navegação. Mas também simbolizam uma estratégia mais ampla: usar IA para gerir a crescente complexidade à medida que mais renováveis entram na matriz.
Pesquisadores afirmam que a IA pode ter papel relevante nas metas climáticas da China. Zheng Saina, professora associada da Southeast University em Nanjing, que estuda transições de baixo carbono, diz que a IA pode apoiar desde o monitoramento de emissões até a previsão de oferta e demanda elétrica. Ela também alerta, no entanto, que a própria IA está impulsionando rápido aumento no consumo de energia, especialmente por meio de data centers altamente demandantes.
A China instala hoje mais capacidade eólica e solar do que qualquer outro país, mas integrar essa energia de forma eficiente continua sendo um desafio. Cory Combs, diretor associado da Trivium China, em Pequim, observa que a IA é cada vez mais vista como instrumento para tornar a rede mais flexível e respon sive.
Essa visão foi formalizada em setembro com a estratégia “IA+energia”. O plano prevê maior integração entre sistemas de IA e o setor energético, incluindo o desenvolvimento de múltiplos grandes modelos de IA voltados a operações de rede, geração de energia e uso industrial. Até 2027, o objetivo é lançar dezenas de projetos-piloto e testar IA em mais de 100 casos de uso; dentro de três anos além disso, as autoridades querem que a China alcance um nível de integração de IA na energia considerado líder mundial.
Combs destaca que a aposta é em ferramentas altamente especializadas para tarefas específicas — gerenciar parques eólicos, usinas nucleares ou o equilíbrio da rede — em contraste com os investimentos dos Estados Unidos, muito direcionados para modelos de linguagem de grande porte, como observa Hu Guangzhou, professor da China Europe International Business School, em Xangai.
Uma aplicação de impacto imediato é a previsão de demanda. Fang Lurui, professor assistente na Xi’an Jiaotong-Liverpool University, lembra que as redes precisam igualar oferta e demanda a cada momento para evitar apagões. Previsões precisas da geração renovável e do consumo permitem planejar com antecedência, armazenando energia em baterias quando necessário e reduzindo a dependência de usinas a carvão como reserva.
Algumas cidades já testam esse tipo de solução. Xangai lançou uma usina virtual de energia que conecta dezenas de operadores — incluindo data centers, sistemas prediais e carregadores de veículos elétricos — formando uma rede coordenada. Em um teste realizado em agosto, o sistema reduziu a demanda de pico em mais de 160 megawatts, o equivalente à produção de uma pequena usina a carvão.
“Você precisa de algo muito robusto, que seja capaz de prever e incorporar novas informações rapidamente”, diz Combs, explicando por que esses sistemas importam num cenário de geração cada vez mais distribuída e intermitente.
Fora das redes elétricas, a China também busca aplicar IA ao seu mercado nacional de carbono, que abrange mais de 3.000 empresas em indústrias emissoras como energia, aço, cimento e alumínio — setores que juntos respondem por mais de 60% das emissões do país. Chen Zhibin, gerente sênior do think tank adelphi, em Berlim, afirma que a IA pode ajudar reguladores a verificar dados de emissões, refinar a alocação de permissões gratuitas e dar às empresas maior clareza sobre seus custos de produção.
Mas os riscos crescem paralelos às oportunidades. Estudos indicam que, até 2030, data centers de IA na China poderão consumir mais de 1.000 terawatt-hora de eletricidade por ano — aproximadamente o mesmo consumo anual atual do Japão. As emissões do ciclo de vida do setor de IA devem subir acentuadamente e atingir o pico bem depois da meta chinesa de 2030.
Xiong Qiyang, pesquisador de doutorado da Renmin University of China envolvido em uma dessas pesquisas, ressalta que os resultados evidenciam a realidade de que o carvão ainda domina a matriz elétrica. Ele alerta que a expansão rápida da IA pode complicar as metas climáticas nacionais se as fontes de energia não mudarem com velocidade suficiente.
Em resposta, reguladores começaram a apertar normas. Um plano de ação de 2024 exige que data centers melhorem eficiência energética e aumentem em 10% ao ano o uso de energia renovável. Outras iniciativas incentivam a construção de novas instalações nas regiões ocidentais, onde há maior disponibilidade de vento e sol.
Operadores do litoral também testam ideias novas. Próximo a Xangai, há um data center submerso em fase de abertura que usa água do mar para refrigeração, diminuindo consumo de energia e água. O desenvolvedor Hailanyun afirmou que a instalação deve abastecer-se majoritariamente de um parque eólico offshore e poderá ser reproduzida se o projeto se mostrar viável.
Apesar do aumento das demandas energéticas da IA, Xiong sustenta que seu impacto total sobre as emissões ainda pode ser positivo se for aplicado com cuidado. Usada para otimizar indústrias pesadas, sistemas elétricos e mercados de carbono, a IA pode continuar sendo parte essencial dos esforços chineses para reduzir emissões — ao mesmo tempo em que cria pressões que exigem gestão e políticas adequadas.