No subsolo de um consultório odontológico em Boise, Idaho, em 1978, quatro engenheiros deram início ao que se tornaria um dos gigantes dos semicondutores dos Estados Unidos. Ward Parkinson, Joe Parkinson, Dennis Wilson e Doug Pitman fundaram a Micron Technology como uma modesta consultoria de design, apoiada por investidores locais — entre eles o magnata da batata J.R. Simplot.
Em 1983, a empresa já havia conquistado um feito tecnológico importante: produziu chips com cerca de metade do tamanho dos principais produtos japoneses da época. Quase cinco décadas depois, essa mesma companhia tomou uma decisão que escancara o impacto profundo da inteligência artificial sobre a economia do hardware: a “fome” de memória da IA está obrigando fabricantes a abandonar segmentos inteiros do mercado.
Em 3 de dezembro de 2025, a Micron anunciou que deixará completamente o mercado de memória para consumidores finais, descontinuando sua marca Crucial — ativa há 29 anos — até fevereiro de 2026. “O crescimento impulsionado por IA nos data centers levou a um aumento na demanda por memória e armazenamento”, afirmou Sumit Sadana, vice-presidente executivo e diretor de negócios da Micron.
“Para melhorar o fornecimento e o suporte aos nossos maiores clientes estratégicos, em segmentos que crescem mais rápido, a Micron tomou a difícil decisão de sair do negócio de consumidores da Crucial.”
Em outras palavras: data centers que operam cargas massivas de trabalho em IA estão dispostos a pagar muito mais por memória do que usuários finais ou pequenas empresas — e a capacidade de fabricação da Micron não consegue atender, ao mesmo tempo, ambos os mercados.
A decisão é, ao mesmo tempo, uma medida de negócios e um marco simbólico: mostra como a demanda voraz de memória pela IA está reestruturando cadeias globais de fornecimento de semicondutores, forçando fabricantes a fazer escolhas duras sobre quais clientes “merecem” acesso a uma capacidade de produção limitada.
## A economia por trás da “fome” de memória da IA
A saída da Micron do mercado consumidor reflete uma realidade econômica incontornável. Terceira maior produtora de DRAM do mundo, com cerca de 20% de participação global, a empresa fica entre as gigantes sul-coreanas Samsung Electronics (43%) e SK Hynix (35%). Juntas, as três controlam aproximadamente 95% da produção mundial de DRAM — um oligopólio agora submetido a uma demanda sem precedentes vinda dos construtores de infraestrutura de IA.
As margens de lucro evidenciam o problema. Módulos de RAM para consumidores finais disputam espaço em um varejo volátil, com rentabilidade mínima. Já os contratos corporativos para memória de alta largura de banda (HBM), usada em aceleradores de IA, e para módulos DDR5 voltados a servidores de data center, garantem preços médios significativamente mais altos, compromissos de múltiplos anos e demanda previsível.
Para os fabricantes de memória, cada wafer de fabricação destinado a produtos de consumo representa receita perdida em contratos empresariais de maior valor — um custo de oportunidade que, diante da aceleração da demanda por IA, se tornou economicamente injustificável.
Os números mostram a dimensão dessa virada. A Micron registrou uma receita recorde de US$ 37,38 bilhões no ano fiscal de 2025, quase 50% de crescimento ano a ano, impulsionada principalmente por data centers e aplicações de IA, que responderam por 56% do faturamento total. A SK Hynix, por sua vez, já teria vendido toda sua capacidade de produção de 2026 para produtos DRAM, HBM e NAND.
Os preços da memória para consumidores acompanharam o movimento. As cotações spot de DRAM subiram 172% em relação ao ano anterior até o terceiro trimestre de 2025. No varejo, módulos DDR5 de 32 GB registraram aumentos entre 163% e 619% nos mercados globais desde setembro de 2025. Fornecedores de componentes relatam pagar US$ 13 por chips DDR5 de 16 GB que custavam US$ 7 apenas seis semanas antes — altas suficientes para eliminar por completo a margem bruta de diversas marcas terceiras.
## Reestruturação do mercado consumidor sob pressão da IA
A saída da Micron redesenha o cenário da memória para consumidores. Marcas terceiras como Corsair, G.Skill, Kingston e ADATA dependem de chips DRAM fornecidos pelas grandes fabricantes. Com a Micron fora desse jogo, essas empresas precisarão disputar de forma ainda mais agressiva a alocação de chips junto à Samsung e à SK Hynix — que, ao mesmo tempo, estão priorizando a produção de memória de alta largura de banda para aceleradores de IA.
Essa concentração gera vulnerabilidades. Samsung e SK Hynix passam a ser as únicas grandes fornecedoras que atendem tanto o mercado consumidor quanto o corporativo. Ambas enfrentam pressões idênticas de alocação de capacidade. Se o ritmo atual de investimentos em infraestrutura de IA se mantiver, é provável que outros fabricantes também reduzam ou reestruturem suas operações voltadas ao consumidor.
As restrições na cadeia de suprimentos já se manifestam além da DRAM. Preços contratuais de wafers de NAND flash subiram mais de 60% em novembro de 2025. O mercado de memória gráfica também está sob pressão, à medida que os fabricantes migram para GDDR7 em GPUs de próxima geração, provocando escassez de GDDR6 e inflando seus preços em cerca de 30%. Fabricantes de discos rígidos aumentaram preços em 5% a 10%, alegando oferta limitada.
Para consumidores e pequenas empresas, o impacto vai além da alta de preços. A disponibilidade de produtos tende a ficar mais restrita em períodos de pico de demanda. A redução de fornecedores atuando diretamente nesse mercado pode diminuir a diferenciação entre produtos e enfraquecer a competição de preços que antes beneficiava os compradores.
## Um realinhamento estrutural da indústria
A saída da Micron do segmento consumidor não é apenas um ajuste tático, mas parte de uma transformação estrutural. O boom de infraestrutura de IA se diferencia radicalmente de transições tecnológicas anteriores. A computação pessoal, a expansão da internet e a disseminação de dispositivos móveis criaram uma demanda consistente por memória ao longo de décadas, acompanhada por ajustes graduais de capacidade.
No caso da IA, o ritmo é muito mais comprimido. Operadoras de data centers em escala hiperescalar estão comprometendo centenas de bilhões de dólares em construção de infraestrutura em poucos anos. Os mercados de semicondutores voltados a data centers ilustram esse salto: o mercado endereçável total atingiu US$ 209 bilhões em 2024 e deve chegar perto de US$ 500 bilhões até 2030, impulsionado principalmente por IA e computação de alto desempenho.
A receita com GPUs, sozinha, deve passar de US$ 100 bilhões em 2024 para US$ 215 bilhões em 2030 — e cada GPU exige uma quantidade substancial de memória de alta largura de banda.
A própria evolução das arquiteturas de memória agrava o desafio. Treinamento de modelos de IA demanda, cada vez mais, módulos HBM3E, que entregam maior largura de banda e eficiência energética. Já as cargas de inferência exigem DDR5 com especificações de latência rigorosas. Na indústria automotiva, arquiteturas zonais estão adotando configurações de DRAM com múltiplos gigabytes. Cada uma dessas aplicações emprega preços premium e contratos de longo prazo — incentivos econômicos que puxam sistematicamente a capacidade de fabricação para longe do mercado consumidor.
A resposta dos fabricantes espelha essa prioridade. A Samsung está avançando na produção de DRAM de classe 1c e planeja iniciar a fabricação em massa de HBM4 em 2025, ao mesmo tempo em que desativa totalmente o DDR4. A Micron começou em 2025 a produção em massa de DRAM usando litografia EUV (Extreme Ultraviolet). A SK Hynix concentra seus esforços de desenvolvimento em HBM e soluções LPDDR avançadas. As três direcionam pesquisa e investimentos de capital para aplicações que oferecem os melhores retornos.
## O impacto para compradores corporativos
Equipes de compras corporativas também enfrentam um cenário mais complexo à medida que o mercado de memória se reconfigura. A memória representa de 10% a 25% do custo de materiais (BOM) de servidores típicos e PCs comerciais. Aumentos de 20% a 30% nos preços de memória podem resultar em acréscimos de 5% a 10% no custo total dos sistemas — o que, em grandes volumes, se traduz em milhões de dólares a mais em despesas.
Entre as respostas estratégicas estão acordos de compra antecipada, o fortalecimento de relações diretas com fabricantes e a diversificação de parcerias com fornecedores. A incerteza sobre prazos adiciona uma camada extra de dificuldade: novas fábricas estão em construção, muitas apoiadas por incentivos governamentais, mas levarão anos até atingir plena capacidade produtiva.
## Questões críticas no horizonte
A decisão da Micron de deixar o mercado consumidor levanta dúvidas fundamentais. Samsung e SK Hynix manterão suas linhas voltadas a consumidores, ou pressões semelhantes de capacidade as levarão a cortes comparáveis? Se a memória para o usuário final passar a ser predominantemente um negócio de marcas terceiras, que dependem de chips fornecidos por fabricantes focados em clientes corporativos, o que acontecerá com a inovação de produto e com a competição de preços?
A concentração de oferta em apenas duas grandes fabricantes que atendem o mercado consumidor cria riscos adicionais. Qualquer interrupção na cadeia de suprimentos que afete Samsung ou SK Hynix terá impacto desproporcional sobre a disponibilidade global de produtos para usuários finais.
As implicações vão além da indústria: tocam diretamente a acessibilidade tecnológica. Se os preços de memória para consumidores permanecerem elevados ou se a oferta ficar restrita, o custo da computação pessoal e da infraestrutura de pequenas empresas aumentará, o que pode ampliar desigualdades digitais.
A decisão da Micron cristaliza o papel da inteligência artificial como força transformadora não apenas do software, mas da própria economia da fabricação de hardware. O fim da marca Crucial, após 29 anos, simboliza o encerramento de uma era em que fabricantes de memória conseguiam atender, com lucro, tanto o mercado de consumo quanto o corporativo.
Na nova fase da indústria de semicondutores, a “fome” de memória da IA se consolidou como o principal motor de crescimento, atraindo recursos em uma escala que redefine, de forma profunda, quais mercados os fabricantes escolhem privilegiar.