Porções profundas dos continentes estão lentamente se desfazendo e migrando para baixo dos oceanos, onde acabam alimentando vulcões distantes. Essa dinâmica, que ocorre nas grandes profundezas da Terra, ajuda a explicar por que ilhas isoladas em meio ao oceano apresentam sinais químicos típicos de rochas continentais, mesmo longe de qualquer limite de placa tectônica.
A pesquisa, publicada neste mês na revista Nature Geoscience, apresenta uma nova explicação para a presença de materiais continentais em ilhas oceânicas remotas. O trabalho foi liderado por cientistas da Universidade de Southampton, no Reino Unido, em parceria com o Centro Helmholtz de Geociências GFZ, em Potsdam, na Alemanha. A equipe combinou análises químicas com modelos computacionais para investigar o que acontece no manto logo após a separação de grandes blocos continentais – e como fragmentos dessas porções profundas podem acabar reaparecendo muito longe de seu ponto de origem.
Em linhas gerais, o mecanismo proposto funciona assim:
- Quando um continente se rompe, surgem instabilidades no manto em profundidades superiores a 100 km.
- Essas “ondas” profundas acabam raspando a base dos continentes, arrancando partes de suas raízes cristalinas mais profundas.
- Os fragmentos são empurrados lateralmente e enterrados sob o manto oceânico recém-formado.
- Com o tempo, esse material continental enterrado derrete e passa a alimentar vulcanismo em regiões oceânicas distantes, muitas vezes a centenas ou mais de mil quilômetros do local de origem.
- As assinaturas químicas observadas em ilhas isoladas confirmam essa reciclagem lenta e prolongada de material continental.
- Os resultados indicam que o manto “guarda memória” dos eventos de rifteamento (abertura de oceanos) por dezenas de milhões de anos.
Os pesquisadores destacam que o tipo de material envolvido é o fragmento mais profundo do manto continental – as chamadas raízes cristalinas dos continentes. É justamente esse “alicerce” subterrâneo que estaria sendo arrancado e transportado lateralmente para baixo das bacias oceânicas.
De acordo com o estudo, assim que um supercontinente ou grande massa continental se parte, instala-se uma onda de instabilidade no manto logo abaixo da região de ruptura. Essa onda funciona como um processo de “raspagem” que atua na base dos crátons – as porções mais antigas e estáveis da crosta continental – removendo partes de suas raízes profundas. Os fragmentos destacados são então deslocados lateralmente e acabam presos sob novas áreas oceânicas em formação.
Mais tarde, esses blocos enterrados podem derreter parcialmente, gerando magmas que sobem e formam ilhas vulcânicas ou montes submarinos no meio das placas oceânicas. Esse ciclo explica por que certos arquipélagos, aparentemente isolados no oceano, exibem composições químicas que remetem claramente a rochas continentais.
Em comunicado, o geocientista Sascha Brune, do GFZ, ressalta que o processo não se encerra com a simples abertura de um novo oceano. Mesmo depois que os continentes se separam, o manto continua em movimento, redistribuindo por longos períodos o material enriquecido que foi arrancado. Segundo ele, o interior da Terra mantém uma “memória” do rifteamento continental, cujos efeitos podem se prolongar por dezenas de milhões de anos.
Para testar a hipótese, os cientistas analisaram, entre outras regiões, a Província de Montes Submarinos do Oceano Índico – uma extensa cadeia vulcânica que se formou após a fragmentação do supercontinente Gondwana, há mais de 100 milhões de anos. As rochas dessa província apresentam fortes sinais químicos de origem continental, algo que não se encaixava de forma satisfatória nos modelos tradicionais de formação de ilhas oceânicas. As novas simulações sugerem que, logo após a quebra de Gondwana, grandes quantidades de material continental foram arrancadas das raízes dos crátons, arrastadas para o manto e devolvidas à superfície em forma de vulcanismo oceânico. Com o tempo, a assinatura química desse material foi enfraquecendo à medida que diminuía o fluxo de fragmentos arrancados.
O estudo também aborda como materiais eletroquimicamente distintos podem se acumular nas profundezas da Terra. Magmas ascendentes – inclusive derivados de antigas placas oceânicas que foram subductadas (empurradas para o interior do planeta) – interagem lentamente com a base dos crátons, modificando sua composição ao longo de milhões de anos. Esse processo gera regiões com composições variadas no manto superior. Em algumas dessas áreas, as condições favorecem a formação de diamantes, que tendem a se concentrar em zonas específicas dessas raízes profundas.
Os autores enfatizam que a descoberta não elimina a importância das plumas mantélicas – colunas de rocha quente que sobem de grandes profundidades e tradicionalmente são associadas a muitos vulcões de ilhas oceânicas. Em vez disso, o novo mecanismo é apresentado como um processo adicional, capaz de influenciar de maneira significativa a composição química do manto e, consequentemente, do vulcanismo em várias partes do globo. Para Thomas Gernon, autor principal do estudo, essas ondas de instabilidade no manto representam mais uma peça importante no quebra-cabeça sobre como o interior da Terra é moldado ao longo do tempo.
A pesquisa se apoia ainda em trabalhos anteriores do mesmo grupo, que já haviam sugerido que essas ondas profundas são capazes de disparar erupções ricas em diamantes e remodelar paisagens muito longe das bordas das placas tectônicas. Agora, o novo estudo amplia esse quadro, indicando que os continentes, apesar de parecerem estáveis à superfície, continuam sendo lentamente “editados” por baixo, com partes de suas raízes sendo arrancadas, recicladas no manto e reaproveitadas em vulcões oceânicos ao longo de eras geológicas.